A busca da identidade nas histórias de vida

"Se imprime na narrativa a marca do narrador como a mão do oleiro na argila do vaso”Walter Benjamin

Na história de vida, a identidade do depoente manifesta-se de várias formas, das mais explícitas às mais imperceptíveis, com maior ou menor consciência. Por outro lado, a identidade do narrador está intimamente associada à sua trajetória de vida em uma via de duas direções. O vetor resultante destas duas “forças”, trajetória de vida e identidade, age no momento da elaboração da autobiografia, fazendo com que esta seja claramente um reflexo de ambas – muito mais do que uma simples conseqüência, o que me parece uma hipótese reducionista.
Como um reflexo ativo, a história de vida não deve ser considerada puramente como uma decorrência da identidade, e esta da trajetória, porém também como uma moldadora da identidade e da trajetória de vida. Esta, se por um lado existiu de fato e teve um e somente um encaminhamento factual, por outro constrói-se novamente no momento da entrevista, revestido muitas vezes de importância para a reelaboração ou reexaminação de um self.
Para melhor desvendar a documentação oral recolhida, portanto, o oralista deve buscar conhecer e interpretar os signos da identidade presentes na história de vida, notando sua interligação com a trajetória vivida pelo narrador e com a forma em que se estrutura sua própria narrativa, num complexo exercício dialético.
A história de vida, que em alguns pontos é semelhante à autobiografia espontânea, traz consigo uma série de características que não se manifestam em outros tipos de documentos históricos, especialmente aqueles que na origem tiveram anulada ou obliterada a personalidade de quem o compôs. Na narrativa autobiográfica, como notou Georges Gusdorf, “a unidade de comportamento e de atitudes não procede do exterior: é certo que os fatos influem, às vezes determinam e sempre delimitam, mas os temas essenciais, os esquemas estruturais que se impõem ao material exterior, são os elementos constituintes da personalidade”[1].
Os aspectos individuais, na história de vida, são exacerbados, enquanto os movimentos gerais da História assumem em geral um plano secundário, e isso faz com que a nossa abordagem destes testemunhos seja diferente daquela que daríamos a uma série estatística ou um relatório governamental. Neste sentido, distingue-se a história oral de vida, preocupada com a experiência subjetiva, da história oral temática, voltada ao fato objetivo e à reconstrução de um passado ignorado. Na história de vida, a verdade dos fatos se subordina à verdade do homem, pois é o homem que está em questão.
Outras características assomam na história de vida, considerada no momento de sua geração. A gravação da entrevista entre o oralista e o colaborador cristaliza uma manifestação histórica. Sua análise, portanto, deve considerá-la como uma forma expressiva determinada pelo espaço e pelo tempo, refletindo não o sentido que o narrador teve dos fatos no passado, mas aquele que lhe ocorre no momento da entrevista – e não de forma inocente ou inconseqüente, como notam alguns estudiosos.
Para Daphne Patai, autora de um importante livro sobre mulheres brasileiras, “o ato de contar uma história de vida envolve uma racionalização do passado como ele é projetado e leva a um presente inevitável. E, de fato, uma versão particular da história de vida de alguém pode se tornar um componente essencial no seu sentido de identidade em um dado momento. Do enorme repertório de memórias e respostas possíveis evocadas pela situação de entrevista, a pessoa entrevistada seleciona e organiza certos temas, incidentes e lembranças, que são então comunicados de uma forma particular”[2].
Desta forma, quando alguém conta sua própria história, busca reunir os elementos dispersos de sua vida pessoal e agrupá-los em um esquema de conjunto, tentando conseguir uma expressão coerente e total do seu destino. Esta tarefa exige que o homem se situe a certa distância de si mesmo, a fim de reconstruir-se em sua unidade e em sua identidade através do tempo. A narrativa autobiográfica, assim, nos traz o testemunho de um homem sobre si mesmo, o debate de uma existência que dialoga com ela mesma, na busca de sua fidelidade mais íntima.
Para o narrador, aliás, não é fácil este voltar-se sobre sua vida. O espaço interior é tenebroso por exelência. A sociologia, a psicologia e a psicoanálise, revelaram a significação complexa e angustiosa que reveste o encontro do homem com a sua imagem. “A imagem é um duplo de meu ser, porém mais frágil e vulnerável, revestido de um caráter sagrado que o torna ao mesmo tempo fascinante e terrível”[3].
Como forma de domesticar esta imagem, surge ao depoente a necessidade de se apoiar sobre eixos narrativos, que orientam a construção de uma história coerente a partir da multiplicidade de imagens e conceitos estocados na estante infinda da memória. Assim, as características pessoais que o sujeito quer fazer constar como aquelas que melhor representam sua vida e sua personalidade, aparecem como o fio condutor da narrativa, definindo seu tom vital e os seus eventos-chave. Estes eixos temáticos determinam a interpretação teleológica que faz da vida o narrador no momento da entrevista.
A predominância de um fio condutor, no entanto, não está subordinada somente à criatividade narrativa do entrevistado, mas à sua própria vida. De fato, a história narrada reflete a trajetória de vida, mas ao mesmo tempo lhe atribui significado; desta forma, encontramos semelhanças entre o desenvolvimento da vida e o desenvolvimento da narrativa; ou, como prefere Georges Gusdorf, entre o estilo da vida e o estilo da obra.
Para este autor, que analisa especificamente as autobiografias, o estilo deve ser entendido não somente como uma regra de escritura senão como uma linha da vida. Assim, o privilégio da autobiografia – e da história de vida – consiste, ao fim das contas, em que nos mostram não as etapas de um desenvolvimento, cujo inventário é tarefa do historiador, senão o esforço de um criador para dotar de sentido sua própria lenda[4].
Surge destas considerações a necessidade para o oralista de abordar a documentação oral em sua complexidade, jamais desvinculando a identidade, a trajetória de vida e a história narrada.
Neste sentido, apoia-nos o semiólogo Roland Barthes, para quem deve-se considerar, em todo o sistema semiológico, “não apenas dois, mas três termos diferentes, pois o que se apreende não é um termo após o outro, mas a correlação que os une: temos portanto o significante, o significado e o signo, que é o total associativo dos dois primeiros termos”[5]. Desta forma, a entrevista como signo de uma vida, de uma identidade, deve ser analisada no complexo história narrada-trajetória vivida. Considerar a história de vida isoladamente destitui-a de seu valor: o significante é vazio, somente o signo pleno é dotado de sentido.
Com o objetivo de reconhecer os signos de identidade que caracterizam o narrador, para melhor interpretar a documentação criada, algumas condutas vêm sendo adotadas por oralistas de diversas partes do mundo. Se aplicadas corretamente, estas condutas permitem ao pesquisador relevar a informação factual ao mesmo tempo em que interpreta a narrativa. São os seguintes alguns dos passos que o oralista pode dar para realizar uma análise global da história de vida[6]:
1) identificar o eixo temático e os temas predominantes, assim como o espaço narrativo principal (se institucional/nacional, local/regional ou familiar);
2) verificar a adequação da história de vida a estereótipos narrativos (tais como os cômicos, trágicos, irônicos ou racionais, e num nível mais específico, do empresário bem sucedido, da mulher trabalhadora, do talentoso injustiçado, do inconformista etc.);
3) desvendar a articulação da narrativa em seu ritmo e temário (relacionando graficamente temas X tempo, analisando a ordem em que os assuntos são abordados na entrevista etc.);
4) reconhecer e analisar os signos lingüísticos caracterizadores do meio e da personalidade (tais como o uso de jargões profissionais, gírias, palavras de baixo calão, estrangeirismos; o sotaque etc.);
5) interpretar elementos fornecidos pela observação participante tais como ambiente, traços físicos e psicológicos da personalidade, presença de terceiros ou outras interferências.
O objetivo final destes passos é tentar estabelecer uma relação entre a história de vida, a identidade e a trajetória de vida, elementos que se interligam sob as formas mais inesperadas, porém sempre em vias de duas direções. Sob esta proposta, mais do que o fato em si, interessa-nos o significado que lhes é atribuído pelo narrador, que deriva de seu estado mental na época, de sua relação com os desenvolvimentos históricos subseqüentes e de seu momento atual de vida.
* * *
Refiro-me agora às entrevistas realizadas para minha pesquisa de Mestrado, nas quais pode-se notar como se interligam em resultantes múltiplas a trajetória de vida, a história de vida e a identidade do narrador[7].
A pesquisa trata da imigração espanhola para São Paulo nos anos de 1945 a 1964, em que no país este contingente atingiu a impressionante cifra de 120.000 imigrantes (dois terços dos quais estabelecidos na cidade de São Paulo). Estudei mais especificamente o núcleo de espanhóis anti-franquistas que se estabeleceu na capital paulista, criando o Centro Democrático Espanhol, ativa associação de caráter cultural e político que viveu dos anos de 1932 a 1972. Foram realizadas onze histórias de vida com ex-participantes deste Centro, sendo dez com imigrantes espanhóis.
Na análise mais detalhada das entrevistas textualizadas, notou-se que a valorização de um determinado eixo temático como fio condutor da narrativa esteve claramente associada à idade do depoente, sua origem social, aos fatos familiares, locais e nacionais por ele vividos, constituindo estereótipos narrativos. Vejamos como isto ocorre, partindo dos motivos da imigração.
De um lado, temos aqueles imigrantes que se identificaram como exilados políticos, ainda que nenhum deles mencione este termo. Para estas pessoas, o fio condutor da entrevista é a atuação política; a velocidade da narrativa, entretanto, é distinta em cada uma.
Antônio Vañó é um tecelão valenciano, que tem claro na lembrança o fuzilamento de seu pai. Vañó quase não fala em sua entrevista sobre os momentos anteriores à imigração. Sua narrativa, porém, é extensa no tocante à ação anti-franquista no Brasil, descrevendo com detalhes a atividade do Partido Comunista Espanhol em São Paulo – da qual tomou parte ativamente. É a “revanche da história”, agora que só Vañó tem a palavra, estando o franquismo morto.
Numa reflexão ao final de sua narrativa, Vañó confirma a importância da atuação política em sua vida:
A labor política forma parte da gente, eu sinto necessidade das minhas aportaciones, entende? Eu não sou um militante ativo (...), não pertenço a nenhum partido... Mas é lógico que toda a minha labor, quando discuto com os camaradas também, está com a parte que eu considero mais justa, o PT [Partido dos Trabalhadores] em primeiro lugar e o PCB [Partido Comunista Brasileiro] depois...
Já o ex-combatente republicano Julián Garcia, em sua história de vida, estende-se longamente nos momentos que vão da instalação da Segunda República espanhola até o término da Guerra Civil. Seu relato da Guerra é fundamental para explicar sua posterior trajetória e posicionamento frente aos problemas espanhóis. O franquismo nunca lhe passaria pela garganta, mesmo hoje, quando na Espanha já se perdoaram os ódios da Guerra. Sua narrativa é marcada pela política, o que fica claramente expresso por ele mesmo ao final de sua entrevista, sugerindo que sua vida inicia-se com a instauração da República em 1931, quando tinha onze anos:
Ou seja, essa é a história de um imigrante espanhol, passando pela Guerra, por tudo isso... Não sei se fui muito elucidativo para você, mas é minha vida, desde os onze anos praticamente até hoje... Se você tiver alguma outra pergunta pode fazer, se quiser qualquer esclarecimento... É a minha vida...
Em sua narrativa, ficam em segundo plano a realização profissional, a família, os estudos. Amplificando a descrição dos episódios da Guerra e da atividade política no Brasil, sua memória trabalha para curar uma ferida, já que de fato a Guerra foi perdida para Julian, e a derrocada do franquismo não teve relação alguma com a luta dos anti-franquistas em São Paulo.
A entrevista concedida pela Sra. Florentina Canto assemelhou-se bastante àquela de Antônio Vañó: ela não se detém muito sobre a Espanha, destacando sobretudo as dificuldades econômicas causadas pelo preconceito político – e seu incomformismo com esta situação. Tendo imigrado para acompanhar seu marido, dedica toda a sua narrativa à luta anti-franquista realizada através do Centro Democrático e à participação na política brasileira atual. Comentando sobre sua presença nos atos políticos atuais, Florentina resume sua filosofia de vida:
Já corri da polícia muitas vezes(...). Por isso meu filho diz: ‘Mamãe, porque tens que ir a esta manifestação?’ Dentro de mim, eu sinto um prazer enorme! Vão me dar com o pau na cabeça? Tudo bem: me dar, me dão. Eu já corri muitas vezes da polícia, mas sinto satisfação, não posso negar...
Florentina Canto, que como todas as outras mulheres dedica grande parte da narrativa ao espaço da família, relaciona-o constantemente com o espaço institucional da política, que fornece os eventos-chave para a periodização de sua vida.
Mas não estamos tão mal, temos casa própria, tenho um filho só, ele trabalha também, um menino – para mãe é sempre menino, está com 28 anos! Um menino muito bom, nunca nos deu um desgosto – nem se mete muito em política, a mim me gustaria que se metesse um pouquinho mais... Mas não gosta, ele acha que é uma bobalheira...
No oposto extremo ao dos exilados políticos tardios, temos aqueles que emigraram por motivos predominantemente econômicos, como Antônio Moreno ou Progresso Vañó. Moreno, proveniente de uma família muito pobre, emigrou aos 17 anos, acompanhando seu pai e seus irmãos. Aqui, trabalhava de dia para pagar os estudos à noite; sua história é a história de sua ascensão:
Fiz primeiro Desenho Técnico, depois eu acabei fazendo o Ginásio, que tinha começado na Espanha mas tinha parado. Depois, eu fiz o curso de Técnico Industrial e cursei a Faculdade aqui em São Paulo, fiz Administração na USP. E... Acho que basicamente é essa a minha pequena história...
Hoje, Moreno é gerente industrial de uma empresa de iluminação e reconhece que sua ascensão social foi possibilitada pela imigração e alcançada com seu esforço:
Eu vim pra cá com a possibilidade de estudar e não via possibilidade nenhuma de estudar na Espanha; eu trabalhava muito, não sobrava tempo pra nada. Aqui eu realmente consegui isso, tive essa possibilidade, me realizei profissionalmente...
Progresso Vañó, irmão mais novo de Antonio Vaño, chegou ao Brasil sem nenhuma formação técnica e muito novo, tendo a oportunidade de estudar e traçar uma carreira ascendente no trabalho, assim como Antônio Moreno. Fez o trajeto do Segundo Grau à Pós-Graduação, de auxiliar de escritório a diretor de banco e professor universitário. Seus irmãos mais velhos, como Antonio Vañó, continuaram dedicando-se ao ofício da tecelagem, o mesmo exercido na Espanha antes da imigração, que se tornaria ultrapassado a partir da década de 1960.
De modo condizente à sua profissão de professor de Economia, Progreso realiza em seu depoimento uma objetiva análise das causas da imigração, destacando o fator econômico como gerador de quase todos os deslocamentos humanos. Sua narrativa é tão bem articulada como deve ser a de um professor.
As entrevistas de Progreso Vañó e Antonio Moreno são aquelas em que mais claramente se nota a construção teleológica da narrativa (que ocorre em qualquer narrativa historiográfica). Nota-se a linearidade que identitifica a vida do self-made man, como se este caminho já estivesse traçado, sem a possibilidade de desvios ou retornos.
Os eixos paradigmáticos de suas histórias de vida são a educação formal e o trabalho; no entanto, se uma grande parte do depoimento de Progreso é crítica e sobriamente dedicada à atuação política, o mesmo não ocorre com Antonio, que omite quase totalmente sua participação no Centro Democrático Espanhol.
Entre os dois polos opostos marcados pelos motivos político e econômico da imigração, encontramos outros estereótipos narrativos, como o caracterizado pela valorização da educação não-formal.
Pablo Briones Revilla, madrilenho nascido onze anos antes do início da Guerra Civil, reconhece que o fator político influiu para sua imigração, mas o que o motivou de fato a abandonar a Espanha foi a falta de perspectivas de melhoria econômica. Em sua organizada narrativa, ressaltou sua história profissional e não pouco significativamente, recebeu-me para a entrevista no escritório de sua marcenaria, entre a mesa de desenho e as ferramentas de sua primeira oficina. É interessante notar que Pablo não fala nada sobre sua família, papel que coube à sua esposa, como veremos.
Percorrendo todo seu depoimento, no entanto, estão as referências ao fato de ter sempre procurado estudar, apesar de nem sequer ter concluído os anos de educação primária:
Eu lia todo dia o noticiário que saía nos jornais. Eu aprendi a ler em casa, com meu pai, porque onde eu morava, na Extremadura, não tinha escola. (...)
Eu sempre procurei ler, indo nas bibliotecas que o governo republicano construiu por todas as cidades, todos os bairros, onde a leitura era diferente.
O auto-didatismo está presente nas principais atividades de sua vida. Na marcenaria, começou como auxiliar ainda na Espanha, vindo a ser proprietário em São Paulo; na política, pouco atuante antes da imigração e do contato com o Centro Democrático, Pablo destaca o aprendizado nas reuniões do Partido Comunista, que lhe possibilitou tornar-se um militante ativo e diretor do Centro Democrático (e posteriormente da Sociedade Hispano-Brasileira de São Paulo).
Enrique García, natural de Jerez de la Fontera, é aquele que melhor caracteriza o auto-didata, o inconformista. Ao contrário de Pablo Briones, Enrique não se atém à questão profissional, destacando sobretudo o aprendizado político e o crescimento cultural. Além disso, Enrique García não teve nenhuma formação política antes de emigrar, desconhecendo tudo o que se tratasse da Espanha anterior à Guerra Civil ou durante o conflito. Sua ignorância a respeito do franquismo era tanta que ele não tinha nem mesmo como e por que se opor àquele regime:
Eu conheci muito mais da Espanha fora da Espanha do que dentro da Espanha. Lá, eu conheci a Espanha de Franco; a outra Espanha, que tinha existido antes, era totalmente desconhecida dos espanhóis, não se falava sobre ela.
Enrique García é o único dos colaboradores desta pesquisa que emigrou sem uma motivação claramente econômica ou política, pois sua família pertencia à classe média urbana e não sofreu problemas de perseguição política após a guerra e nos anos do franquismo.
Chegando ao Brasil, Enrique entrou em contato com o Centro Democrático Espanhol, ainda em plena atividade, onde conheceu pessoas das mais variadas tendências de esquerda e começou a participar das reuniões clandestinas do Partido Comunista Espanhol. Isto lhe permitiu estudar o que fora a Guerra Civil e o que era o franquismo, tomando consciência de que deveria tomar partido contra aquela ditadura:
Eu era apolítico em função de desconhecimento: uma vez que eu comecei a conhecer, a ler, a me informar, a escutar pessoas que participaram da Guerra, minhas idéias foram se esclarecendo, assim eu tomei posição segundo o que me parecia certo. Sou um anti-franquista “esclarecido”, não por ter sofrido na pele a repressão política, ou alguém de minha família.
O que pode ser considerado o tema condutor de sua entrevista, assim como daquela de Pablo Briones, fica expresso no seguinte comentário:
Eu sou uma pessoa que sempre teve uma preocupação política, uma preocupação em saber, ter conhecimento. (...) Eu nunca fui uma pessoa conformista.
O último paradigma narrativo identificado nas entrevistas que realizei é aquele marcado pelo ritmo familiar, podendo ser reconhecido sob distintas formas nas histórias de vida das espanholas Juana Naranjo e Paula Alonso e da paulistana Carmem Moreno. Nestes três depoimentos, são constantes as menções a questões políticas, que no entanto sempre estão ligadas aos fatos familiares vividos pelas narradoras. O referente espacial de suas narrativas é o lar, ampliado unicamente pelo espaço coletivo do Centro Democrático Espanhol e, na medida em que ambienta e define a história da família, o espaço institucional.
A entrevista da sevilhana Juana Naranjo é a que apresenta um ritmo familiar de narrativa mais uniforme. Ademais, se comparada àquela de Pablo Briones, exprime com clareza a oposição entre os papéis narrativos feminino e masculino. Juana Naranjo é a segunda esposa de Briones, que é também seu segundo esposo, e através de seu testemunho conheci mais a respeito da vida familiar do marido do que na entrevista concedida por este.
Na narrativa de Juana Naranjo, os momentos de corte são determinados pelos fatos familiares: a prisão de seu pai, a morte de sua mãe, seu casamento, o nascimento dos filhos, o falecimento do marido, seu segundo casamento, as bodas dos filhos. Os acontecimentos políticos nacionais servem como ambientação à história de sua família, assim como as referências aos problemas econômicos ou à atividade do Centro Democrático. Sua realização não se dá no plano político ou profissional, mas no nível da família.
Na entrevista de Pablo Briones, ao contrário, o referente espacial da narrativa é o coletivo, representado pela fábrica e pelo Centro Democrático, onde se desenvolveram suas habilidades profissionais e políticas. O espaço pessoal raramente é abordado, deixando mesmo incompleta sua história de vida, pois não há referência ao seu segundo casamento nem ao nascimento e casamento dos filhos. Significativamente, a Sra. Juana recebeu-me para a entrevista em sua casa, enquanto o marido narrou-me sua história no escritório de sua fábrica, ambos associando intrinsecamente o espaço narrativo ao espaço no qual foi concedida a narrativa.
Paula Alonso e Carmem Moreno diferem de Juana Naranjo por darem uma atenção maior à política, sempre abordada, porém, através da ótica da família. Paula Alonso, natural da Província de León, em parte de sua entrevista dedica-se a narrar a repressão política em sua cidade natal nos anos de Franco. Com bastante emoção, apresenta o relato mais brutal entre os obtidos neste trabalho: a família de sua mãe teve praticamente todos os homens exterminados e mesmo seus irmãos mais novos sofreram nas mãos da terrível Guarda Civil:
Quando queimou a casa do meu avô – porque mataram o filho, mataram três genros, meu pai que era muito ligado com o sogro, muito mesmo, também esteve quase pra ser morto – ele acabou enlouquecendo, meu avô....
Na origem de emigração da família está novamente o fator político, desta vez preponderando sobre o econômico, de não pouca importância. Em sua narrativa, porém, os acontecimentos políticos subordinam-se ao ritmo familiar, marcado por nascimentos, casamentos, mortes e desterros.
Da mesma forma estrutura-se a entrevista de Carmem Moreno, paulistana, filha de espanhóis e mulher do espanhol Antonio Moreno, que tomou contato com a atividade anti-franquista ainda criança, no ambiente politizado dos imigrantes na Moóca, o bairro espanhol de São Paulo nos anos de 1950 e 1960. Grande parte de sua narrativa é dedicada à atuação do Centro Democrático Espanhol, da qual tomou parte desde criança, e assim como nos casos anteriores, o ambiente da associação é relembrado como familiar e observado por este prisma.
Assim como Paula Alonso e em menor grau Juana Naranjo, Carmem Moreno associa a atuação política à tradição familiar, como fica expresso com emoção no trecho seguinte:
Meu avô também se dedicou à luta política contra a ditadura franquista e sempre foi assim: eu conheci Franco desde pequena. Nasci com aquilo, conhecia músicas... Na casa de meus avós e na casa de meus pais sempre se reunia o pessoal para discutir política – reuniões que eram proibidas... Meu pai pertencia ao Partido [Comunista], depois minha mãe se casou com um homem que também pertencia ao Partido e meu tio Emílio também, todos eram políticos, eram militantes.
Se Carmem Moreno, Paula Alonso e Juana Naranjo estabelecem o discurso “Já nasci anti-franquista”, podemos nomear também os outros estereótipos narrativos identificados acima, que seriam expressos nas frases: “O labor político forma parte da gente” (Antonio Vañó e Julián Ángel), “Eu sempre gostei de estudar” (Progreso Vañó e Antonio Moreno) e “Eu nunca fui uma pessoa conformista” (Pablo Briones e Enrique Garcia).
Estes diversos padrões de auto-representação, sem se pretenderem por demais rígidos, tampouco são originais, visto manifestarem estereótipos encontrados em biografias, autobiografias e na literatura ficcional de diversas culturas ocidentais. Ademais, outros trabalhos de história oral enfocaram o depoimento sob este aspecto, como o importante Fascism in Popular Memory, de Luisa Passerini[8].
Estudando a classe operária turinense no entre-guerras, a autora identifica uma dúzia de estereótipos narrativos nas 67 entrevistas que realizou. Dentre estes, alguns guardam extrema semelhança com os apontados aqui, como os discursos “We were born socialists” e “upward mobility”.
Os demais estereótipos identificados neste trabalho guardam menores semelhanças com aqueles apontados por Passerini, no entanto percebe-se a universalidade de certos ritmos e padrões narrativos, como os marcados pelo tempo familiar, recorrente entre as mulheres, pela valorização do trabalho ou do estudo, predominante entre os homens, pela auto-imagem de eterno rebelde ou de conformista, presentes em ambos os grupos.
Passerini nota que a escolha de um padrão narrativo não exprime necessária e imediatamente uma identidade psicológica. Os entrevistados têm consciência que seus depoimentos não se encaixam com perfeição à realidade, apesar de serem moldados por esta. Justamente por saberem que estão contando uma história, no entanto, recorrem intencionalmente aos estereótipos narrativos de sua cultura, que são usados com propósitos simbólicos[9].
Geoges Gusdorf, em texto já analisado neste trabalho, vai mais longe ao afirmar a constante imbricação entre a vida, a obra e a autobiografia. Segundo o autor, o estilo nas autobiografias deve ser como reflexo de uma linha da vida. A verdade da vida não é distinta, especificamente, da verdade da obra. Há um estilo de vida romântico, assim como há um clássico, barroco, existencial ou decadente.
Além disso, toda autobiografia é uma obra de arte e, ao mesmo tempo, uma obra de edificação: não nos apresenta o personagem visto de fora, em seu comportamento aparente, senão a pessoa em sua intimidade; não tal como é, senão como crê e quer ter sido. Esta postulação de sentido determina as opções narrativas da autobiografia e da história de vida; os esquecimentos e deformações da memória provêm de uma opção do autor, que quer fazer prevalecer uma versão revisada e corrigida do seu passado[10].
* * *
Poderíamos seguir analisando as entrevistas sob vários outros aspectos – os sonhos e fantasias expressos nas narrativas, a formação dos mitos da luta anti-franquista, o domínio da língua portuguesa por parte dos depoentes – a lista é extensa e parece não ter fim, dependendo de até onde chegue o impulso do pesquisador. O importante é destacar que, mesmo sem desprezar a validade da informação contida nas entrevistas, o grande interesse da História Oral reside na análise da narrativa enquanto construção verbal subjetiva e consciente, expressando o sentido que o narrador tem de si mesmo na história.
Essa abordagem não quer desmerecer o impulso primevo da História Oral: a procura pela experiência direta, pelo testemunho da primeira pessoa, que pode preencher os espaços vazios deixados pelos documentos tradicionais. Este impulso é fonte de uma tensão moral e política que este método atrativo, sendo usado por muitos como um meio de ação política e social, transformando mesmo os objetivos da História.
Enquanto buscarmos informações objetivas, no entanto, pouco mudaremos no conteúdo e no propósito da História. Estes de fato só mudarão quando passarmos a nos interessar pela subjetividade dos narradores; pelas formas culturais e processos através dos quais os indivíduos expressam o sentido de si mesmos na história; enfim, pela “objetividade” do subjetivo, se podemos falar assim.
A crítica histórica, sem deixar de ser efetuada, não deve prevalecer sobre um segundo tipo de crítica, que,
“em lugar de verificar a correção material da narração ou de mostrar seu valor artístico, se esforce em obter a significação íntima e pessoal, considerando-a como o símbolo, de alguma maneira, ou a parábola, de uma consciência em busca de sua verdade pessoal, própria”[11].
Esta tendência, ainda que nascente, parece que está trazendo mais vida à História Oral, encarando o sujeito em função de seu interior, e não dos fatos que lhe são externos.
[Junho de 1998]
[1] – Gusdorf, Georges. “Condiciones y límites de la autobiografía”. in Suplementos Anthropos 29: La autobiografía y sus problemas teóricos. Estudios Madrid, Dez. 1991. P.13. Neste trabalho, o autor analisa somente autobiografias, não se referindo a biografias obtidas com a intermediação de um entrevistador, como na História Oral. Grande parte de suas constatações, no entanto, aplica-se também às histórias de vida produzidas por oralistas.
[2] – Patai, Daphne Brazilian Women Speak. New Brunswick, Rutgers University Press, 1988. p.9.
[3] – Gusdorf, G. Op.cit., p.11.
[4] – Ibid. P. 17.
[5] – Barthes, Roland Mitologias. S.Paulo, DIFEL, 1982. p.135
[6] – Supõe-se aqui que a entrevista tenha sido realizada segundo os critérios da História Oral de Vida, isto é, de forma não-dirigida, sem questionário pré-estabelecido, seguindo diretrizes de um projeto e por isso contendo uma ou mais perguntas de corte, que permitirão a aglutinação das narrativas em torno a um tema comum.
[7] – Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo em 1995 e publicada no ano seguinte: Gattaz, André C. Braços da Resistência: uma história oral da imigração espanhola. São Paulo, Ed. Xamã, 1996.
[8] – Passerini, Luisa Fascism in Popular Memory. The Cultural experience of the Turin Working Class. Cambridge, Cambridge University Press/Editions de la Maison des Sciences de l'Homme, 1987.
[9] – Ibid. p.60.
[10] – Gusdorf, G. Op.cit., pp.12-15.
[11] – Ibid. p. 16.

Referência deste artigo: GATTAZ, A.C. A busca das identidades nas histórias de vida. In: Xth International Oral History Conference Proceedings. Rio de Janeiro, jun/1998, v. 2., p. 875-84.

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