Lapidando a fala bruta: a textualização em história oral

Pressupostos teóricos
Assumindo que a História Oral concretiza-se somente quando chega ao texto, superando a etapa da entrevista e da formação de arquivos, deve haver um processo de "transcrição" das entrevistas que assegure a formação de um corpo documental a ser trabalhado pelo historiador.
Entende-se ainda que a linguagem falada e a escrita têm valores distintos. O oralista Pilippe Joutard cita a respeito Maurice Pons, para quem "entre a fala e a escrita (...) há uma diferença pela qual escapam sutilmente a verdade e a vida(...)". Analisando uma entrevista que realizou com Simone Signoret, Pons nota que em suas frases "existe o calor, a emoção, o riso, o ofício, o talento. Ao serem lidas, as mesmas frases aparecem sumárias e secas, quase embrulhadas em suas vestes escritas. (...) Signoret não consegue escutar-se ao ler-se. Não se reconhece em si mesma"[1].
Para que o narrador reconheça-se no texto da entrevista, é preciso que a transcrição vá além da passagem rigorosa das palavras da fita para o papel. A transcrição literal, apesar de extremamente necessária, será apenas uma etapa na feitura do texto final, que chamo de textualização, por ser ao fim e ao cabo um modo de se reproduzir honesta e corretamente a entrevista em um texto escrito.
A textualização deve ser uma narrativa clara, onde foram suprimidas as perguntas do entrevistador; o texto deve ser "limpo", "enxuto" e "coerente" (o que não quer dizer que as idéias apresentadas pelo entrevistado sejam coerentes); sua leitura deve ser fácil, ou compreensível, o que não ocorre com a transcrição literal, apresentada por alguns historiadores como "fiel" ao depoimento, porém difícil de ser analisada como documento histórico.
A textualização final deve conter em si a atmosfera da entrevista, seu ritmo e principalmente a comunicação não-verbal nela inclusa: emoções do depoente como risos ou choro, entonação e inflexão vocal, gestos faciais, de mãos, ou mesmo do corpo. O texto, ainda, não pode abandonar a característica de originalmente falado, devendo ser identificado como tal pelo leitor.
Para conseguir chegar a este resultado, valemo-nos de dois conceitos da lingüística, que não podem ser entendidos separadamente: o de transcriação, proposto por Haroldo de Campos, e o de teatro de linguagem, formulado por Roland Barthes, ambos adequados à prática da História Oral por José Carlos Sebe Bom Meihy[2].
A transcriação surge da necessidade de se reformular a transcrição literal para torná-la compreensível à leitura. Na transcrição literal há inúmeras frases repetidas, enquanto outras são cortadas pelo entrevistando ou pela qualidade da gravação; há muitas palavras e expressões utilizadas incorretamente, devido à própria dinâmica da fala, da conversa informal - que é o que tentamos fazer das entrevistas. Há estrangeirismos, gírias, palavras chulas, ou seja: termos que são bastante distintos quando falados ou escritos.
Tendo-se portanto em mente que o código oral e o escrito têm valores diferentes, procura-se corrigir esta desigualdade através da transcriação. Processa-se então uma intensa atividade sobre o texto e a gravação, na qual palavras, frases e parágrafos serão retirados, alterados ou acrescentados, permitindo que o não literalmente dito seja dito.
Este processo está ligado à criação do teatro de linguagem, que é a passagem para o texto da comunicação não-verbal: a emoção insinuada através de uma careta, de um sorriso, ou de uma lágrima. Trabalho árduo, verdadeira lapidação da fala, que não poupa a consciência do historiador de dilemas éticos perante cada alteração, adição ou corte.
O trabalho de textualização das entrevistas, uma "alteração" da transcrição literal, levanta problemas teóricos que devem ser considerados. Os oralistas que adotam esta postura freqüentemente são acusados de "ficcionistas", pois considera-se ainda em muitos espaços que a textualização pertence ao ramo da literatura, por ser um "embelezamento" da transcrição literal que tira seu caráter de "verdade". Assim, cabe aqui retomar as tendências mais novas da antropologia, da crítica textual e do fazer histórico, considerando que a poética - e a política - são inerentes a qualquer produção de análise cultural, e que a ciência está dentro, e não acima, dos processos históricos e lingüísticos[3].
A noção de que os procedimentos literários permeiam qualquer trabalho de representação cultural é uma idéia recente na antropologia. Para Clifford Geertz, processos como metáfora, figuração e narrativa afetam os modos pelos quais os fenômenos culturais são registrados, das primeiras observações anotadas, ao livro completo e às maneiras como essas configurações fazem sentido em determinados atos da leitura. O etnógrafo "inscreve" o discurso social: ele o anota. Ao fazê-lo, ele o transforma de acontecimento passado, que existe apenas em seu próprio momento de ocorrência, em um relato, que existe em sua inscrição e que pode ser consultado novamente[4]. Os gêneros acadêmico e literário, portanto, interpenetram-se inegavelmente no trabalho etnográfico em geral; além disso, a escrita de descrição cultural é propriamente experimental e ética.
Para Geertz, a palavra "ficção" retoma seu sentido mais explícito: perdendo a conotação de falsidade, de algo meramente oposto à verdade, ela sugere a parcialidade das verdades culturais e históricas, o modo como estas são sistemáticas e exclusivas. "Os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, somente um 'nativo' faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura.) Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são 'algo construído', 'algo modelado' - o sentido original de fictio - não que sejam falsas, não-factuais ou apenas experimentos de pensamento"[5]. Focar a atenção na feitura do texto e em retórica, assim, serve para iluminar a natureza artificial, construída, de qualquer contar cultural.
Assume-se, portanto, que a textualização final da entrevista é de autoria do historiador, sendo o depoente um colaborador para a fabricação deste novo documento. Pensando o texto final como uma obra que fazemos juntos, ficam validadas as reflexões sobre o esforço de "maquiagem" contido no procedimento escolhido[6]. Desde o início da leitura da entrevista este esforço deve estar aparente, afinal, onde estão as perguntas feitas aos entrevistados? Como se chegou a um texto corrido e limpo? Na textualização, a interferência do autor não deve ser negada, porém explicitada.

Procedimentos metodológicos
Descrevo agora em termos práticos o processo da textualização, baseado em minha experiência na pesquisa de Mestrado, para a qual entrevistei onze imigrantes espanhóis. O elemento definidor da colônia de entrevisados foi a participação no Centro Democrático Espanhol, entidade recreativa, cultural e política que congregou em São Paulo os imigrantes que se opunham ao franquismo. As entrevistas foram conduzidas segundo os critérios da História Oral de Vida, sem questionário rígido ou perguntas diretamente indutivas, e tiveram a duração média de 60 minutos.
A primeira etapa da textualização é a transcrição literal, que realizo logo após a entrevista, quando as palavras do depoente ainda estão frescas na lembrança. Esta transcrição deve ser completa e o mais rigorosa possível, registrando através de sinais gráficos a interrupção de palavras, frases ou parágrafos e outras características da entrevista.
Após a transcrição literal, realizo a primeira textualização, onde as perguntas são incorporadas à fala do depoente e cada parágrafo é transcriado para ficar mais compreensível - este trabalho também é realizado junto com a escuta da fita. Ficam em suspenso as passagens mais obscuras, incompletas ou incompreendidas, que serão esclarecidas nos processos posteriores. A leitura desta primeira textualização dá ares novos e desconhecidos à entrevista. Sobre este texto, elaboro um índice classificando cada parágrafo com uma combinação de letras e números, de acordo com uma lista pré-estabelecida representando os temas tratados nas entrevistas.
Com base neste índice, é realizada uma nova textualização, onde os agrupamentos temáticos vão se definindo melhor e a entrevista sofre um significativo enxugamento. O texto é então reescrito, e assim quantas vezes necessário, dando-se destaque à criação do teatro de linguagem, já permitido pela extensiva reescuta da fita e releitura da entrevista; pode-se então seguramente fazer as últimas adaptações, necessárias para se transmitir algo implícito no depoimento mas não explícito nas palavras gravadas.
Depois deste trabalho, a textualização não se encontra ainda finalizada; torna-se imperioso submetê-la à apreciação do entrevistado, não só como meio de checar se está fiel às suas idéias, mas também para dirimir problemas de caráter ético e mesmo jurídico. Há de se lembrar que a textualização da entrevista - assim como a própria utilização de depoimentos orais - preocupa muitos historiadores pela possível adulteração do documento ou, no caso do uso de entrevistas em geral, da memória.
Chamamos esta última etapa de conferência e legitimação, quando o colaborador comenta a entrevista, fazendo as correções ou alterações que quiser, adicionando fatos ou vetando frases, de acordo com o que pensar ser conveniente; ele tem todo o poder e o direito de fazer isso e deve-se respeitar sua palavra final[7].
Estando a textualização bem realizada, o esperado é que o entrevistado identifique-se no texto, reconhecendo-se nos seus temas de preferência ou no próprio ritmo da narrativa. Nas conferências que realizei, foram feitas apenas pequenas correções de datas, nomes de pessoas ou locais e melhoramentos na própria textualização, sendo que o resultado final desta foi considerado bom por todos os depoentes.
Um problema surgido na textualização das entrevistas diz respeito à eliminação ou não dos espanholismos. Por um lado, não pretendia manter no texto final todas as palavras ditas em espanhol pelos depoentes, que em certas entrevistas são bastante freqüentes. Por outro lado, também não era intenção minha eliminá-las por completo, pois são um indicador do grau de integração obtido pelos imigrantes.
Adotei assim o critério de eliminar grande parte dessas palavras, deixando somente aquelas recorrentes ou especialmente significativas. Aqueles que usam poucas palavras em espanhol, tiveram-nas praticamente suprimidas na textualização; aqueles que se utilizam de inúmeros espanholismos, tiveram número maior deles conservado no texto final. Esta solução agradou os colaboradores, que reconheceram a importância da alteração do texto.
Após a conferência e legitimação, a textualização é indexada segundo uma lista temática, estando finalmente disponível para a utilização como um documento histórico. Parte-se então para a interpretação deste material, rico em informações e análises, carregado de vida e opinião.
Vimos que a textualização legitimada deve ser a forma adotada para a apresentação por escrito da entrevista. Devido às diferenças no processo de adaptação da palavra falada para o texto escrito conforme os propósitos e objetos de cada pesquisa, é necessário explicitar a operação para leitores e colaboradores. Volto, assim, a citar Philippe Joutard, que propõe a maleabilidade na forma de transcrição:
Não existem soluções milagrosas; tudo depende em realidade do tipo de pesquisa. (...) As soluções podem ser múltiplas; o importante é precisar os princípios utilizados na trancrição, os tipos de reajustes realizados, os cortes feitos com (por que não?) exemplos"[8].
Alguma forma de textualização, no entanto, e legitimada, deve haver: a distância entre os códigos oral e escrito, além da ética, obrigam-nos a tanto.
[1] - JOUTARD, P. Esas voces que nos llegan del pasado. México, FCE, 1986. p.333.
[2] - MEIHY, J.C.S.B. Canto de morte Kaiowá. S. Paulo, Ed. Loyola, 1991. pp.29-33.
[3] - CLIFFORD, J. "Introduction: Partial Truths" in CLIFFORS, J. e MARCUS, G. Writing Culture. Los Angeles, University of California Press, 1986. p. 2.
[4] - GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Ed.Guanabara, 1989. p.29-30.
[5] - Ibid, pp.25-26.
[6] - MEIHY, J.C.S.B. A Colônia Brasilianista. S.Paulo, Nova Stella, 1990. p. 22.
[7] - A colônia..., Op. cit., p. 25.; Canto de morte..., Op. cit., p. 31.; THOMPSON, P. La Voz del Pasado. Valencia, Ed. Alfons el Magnànim, 1984. p.260
[8] - JOUTARD, P. Op.cit. pp.334-335. Grifo meu.]

Referência deste artigo: GATTAZ, A.C. Lapidando a fala bruta: a textualização em História Oral. In: MEIHY, J.C.S.B. (org.). (Re)definindo a História Oral no Brasil. São Paulo, Ed. Xamã, 1996. p. 135-40

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