O muro de segurança israelense e o desrespeito à lei internacional

Artigo apresentado no Painel Internacional da I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, realizada em Brasília, nos dias 30 de junho a 2 de julho de 2005.



Como historiador, eu gostaria de dedicar parte de minha intervenção a um rápido histórico dos 60 anos de existência do Estado de Israel, para compreendermos melhor qual a origem do problema que impede a pacificação entre israelenses e palestinos, e possamos indicar políticas no sentido de atuarmos ativamente na busca de uma solução para o conflito. Em seguida comentarei o momento atual do conflito, e as implicações da construção do muro de segurança israelense no que diz respeito à lei humanitária internacional.
O Estado de Israel teve um início conturbado, uma vez que os colonos sionistas que passaram a colonizar a palestina a partir dos anos 1930 receberam a oposição das populações árabes locais. Com o plano de partilha proposto pela ONU em novembro de 1947, e a criação do Estado de Israel em maio de 1948, iniciou-se a chamada primeira guerra árabe-israelense, em que Israel venceu Estados árabes vizinhos e conquistou territórios que pertenceriam ao Estado palestino, expulsando grande parte da população nativa da região que veio a constituir o Estado judaico. Suas novas fronteiras foram imediatamente reconhecidas pelos principais atores da geopolítica internacional, embora não pelos Estados árabes. Quanto ao Estado palestino projetado no Plano de Partilha, jamais existiu, sendo a área da Cisjordânia incorporada à Jordânia, e a Faixa de Gaza administrada pelo Egito.
Esta situação, embora criticada pelos opositores de Israel à época, parecia se tornar permanente, e certamente o tempo teria levado os países árabes a aceitarem a existência do Estado de Israel, que por sua vez abriria mão de novas conquistas e manter-se-ia restrito às fronteiras de 1949.
Nessa época, o estado judaico deu início à construção do que o ex-ministro da Justiça israelense Yossi Beilin chama de “a mais quieta e mais bonita década de sua vida. [...] As crianças pegavam ônibus e os pais não se preocupavam pelas suas vidas...” Segundo Beilin: “Israel da década de 1960 era um país que estava florescendo e seguro de si mesmo, absorvendo os imigrantes, conectado com o Oriente e o Ocidente. [...] O mundo saudou o grande sucesso israelense nos campos agrícola, militar, e do recebimento de novos imigrantes, e parecia que nada podia interromper este desenvolvimento.
A situação mudou radicalmente para Israel após junho de 1967, quando o governo militarista de Israel decidiu ocupar os territórios palestinos da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental, colocando os cidadãos palestinos sob regime de ocupação militar e iniciando a construção de assentamentos judaicos nas melhores setores dos territórios ocupados.
É esta guerra, conhecida como Guerra dos Seis Dias, que está na origem do problema atual – alguns israelenses consideram o erro mais grave cometido por Israel na luta pela sua afirmação nacional, pois o país foi então tomado pela cegueira de não ver a situação dos palestinos nos territórios ocupados, e de acreditar que a colonização judaica destes territórios seria compatível com a manutenção dos palestinos em situação de miséria econômica, privação de liberdade e ausência de expectativas.
A ocupação dos territórios foi imediatamente condenada pela ONU, que em novembro de 1967, por meio da Resolução 242 do Conselho de Segurança, exigiu a incondicional retirada israelense. Com o descumprimento, por parte de Israel, desta resolução, e a inação das Nações Unidas no sentido de cobrar de Israel a obediência a seus termos, ganhou força, entre a diáspora palestina, a Organização pela Libertação da Palestina, que, por meio de métodos legais e ilegais começou a lutar contra a existência do Estado de Israel – de fato, apenas nos anos 1978-1982 a OLP reconheceria a Israel o direito à existência.
Ao mesmo tempo começou a se desenvolver, nos territórios palestinos, uma resistência mais ou menos pacífica contra o poder ocupante, explodindo em movimentos violentos de tempos em tempos, como entre 1988 e 1991, quando se deu a primeira Intifada.
Iniciaram-se então as negociações bilaterais de paz, o “processo de Oslo”, que de fato lançou as sementes da bantustanização da Palestina. Segundo diversos acordos firmados entre os anos de 1993 e 2000, os territórios ocupados foram divididos em diversos setores nos quais os poderes civil e militar passariam progressivamente para os palestinos. Ao mesmo tempo, seriam realizadas retiradas progressivas do exército de ocupação e o desmantelamento de alguns assentamentos judaicos. Por meio desse processo, ao cabo de sete anos a Autoridade Palestina controlava menos de 10% dos territórios ocupados, enquanto nos restantes 90% mantinha-se a exploração econômica israelense dos recursos naturais, a construção de novos assentamentos e estradas, e a ocupação militar israelense.
Aos olhos do mundo o processo de paz corria bem. Em maio de 2000, quando o presidente estadunidense Bill Clinton convidou os representantes israelenses e palestinos a Camp David para uma última rodada decisiva de negociações, parecia estar próximo um acordo final. Após quinze dias de intensos debates, entretanto, a delegação palestina acabou por recusar a oferta feita pelo primeiro-ministro Ehud Barak, que, segundo ele mesmo, ofereceu mais do que qualquer líder israelense havia jamais oferecido aos palestinos.
Aos olhos do mundo, o fracasso foi atribuído à intransigência do líder palestino Yasser Arafat, que não estaria interessado na pacificação. Na imprensa, entretanto, entre as condenações públicas a Arafat, jamais foi exibido e comentado o mapa dos territórios que foram oferecidos por Israel para a construção do Estado Palestino: uma verdadeira colcha de retalhos, composta por cerca de 60 pequenos trechos isolados de terras, alguns tão pequenos como um pequeno sítio rural brasileiro, com cinco ou dez hectares, separados por cercas, e entremeiados por estradas de uso exclusivo dos israelenses, e por mais de 200 assentamentos judaicos onde residem cerca de 250.000 colonos, ocupando as terras mais férteis e ricas de recursos minerais.
A ilusão de um processo de paz que iria levar ao tão sonhado Estado palestino fez com que ao longo dos anos 1990 o movimento de resistência palestino permanecesse adormecido, ganhando força os setores da sociedade simpáticos a uma acomodação com Israel. Entretanto, o fracasso do processo de paz, unido à situação desesperadora dos palestinos nos territórios ocupados e a uma provocadora visita do deputado Ariel Sharon à Esplanada das Mesquitas, fez com que em setembro de 2000 eclodisse a Nova Intifada, a nova revolta palestina contra a ocupação israelense.
Em Israel, o governo trabalhista, responsável pela fracassada condução do processo de Oslo, foi substituído pelo governo direitista do Likud, que intensificou a repressão à resistência palestina, retomou com todo vigor a desapropriação de terras palestinas e a construção de assentamentos judaicos. Entre os palestinos, ganharam força os grupos de resistência mais intransigentes, que passaram a promover ataques não apenas contra o exército de ocupação israelense, mas também contra a população civil de Israel, dando argumento aos falcões israelenses e gerando um círculo vicioso que parece longe de terminar – apesar do otimismo de alguns com o atual estágio de negociações.
Dois anos após o início da Nova Intifada e do sepultamento definitivo do processo de paz de Oslo, o governo israelense deu início à construção da mais que vergonhosa “cerca de segurança” – na verdade, um complexo de fortificações composto por muros, cercas, fossos, barreiras, portões de controle, torres de segurança e equipamentos de vigilância eletrônica, orçado em mais de um milhão de dólares o quilômetro. Embora o governo israelense denomine-o “cerca de segurança”, o complexo vem sendo conhecido no restante do mundo como “muro da vergonha” ou ainda “muro do Apartheid”, numa triste recordação dos tempos do apartheid que separava negros e brancos na África do Sul, ou do muro que simbolicamente separava o comunismo do capitalismo.
O muro do apartheid vem criando uma separação de fato das regiões oferecidas aos palestinos no processo de paz de Oslo, como se pode notar pela sobreposição entre o mapa do fracassado Acordo de Camp David e o mapa das sessões já construídas e projetadas do muro israelense. O muro não cerca a Cisjordânia, como pensam algumas pessoas que nunca viram o mapa, porém é construído dentro do território ocupado, criando verdadeiros bantustões onde devem ficar restritos os palestinos, no que pode ser considerada a maior prisão do mundo, pois está restringindo a liberdade de toda uma nação.
Enquanto debatemos neste auditório, o muro continua avançando qual serpente furiosa através dos campos e cidades palestinas. Os camponeses são separados de suas terras, e os pais são separados de seus filhos; os estudantes não conseguem chegar às escolas, os doentes morrem antes de chegar aos hospitais. Os palestinos não têm o controle de suas fronteiras externas, e nem o controle da água e dos demais recursos naturais. E a destruição é sistemática. A destruição das pobres e rústicas casas dos aldeões palestinos; a destruição de suas oliveiras e laranjeiras; a destruição de seus hospitais e ambulâncias; a destruição de toda infra-estrutura urbana; a destruição das famílias e dos lares, e a destruição arbitrária de qualquer esperança que possam ter os palestinos, de que dias melhores virão.
Preocupada com a situação, a Assembléia Geral da ONU decidiu, em dezembro de 2003, dirigir à Corte Internacional de Justiça a seguinte consulta: “Quais são as conseqüências legais da construção do muro que vem sendo construído por Israel, o poder ocupante, no Território Palestino Ocupado, incluindo Jerusalém Oriental e perímetro urbano, como descrito no relatório do Secretário Geral, considerando-se as regras e princípios da lei internacional, incluindo a Quarta Convenção de Genebra, de 1949, e as resoluções relevantes do Conselho Geral e da Assembléia?”
E aqui eu tomo a liberdade, para concluir, de reproduzir os parágrafos mais importantes da opinião emitida pela Corte Internacional em 9 de julho de 2004:
“A. A construção do muro que vem sendo construído por Israel, o poder ocupante, no Território Palestino Ocupado, incluindo Jerusalém Oriental e perímetro urbano, e seu regime associado, são contrários à lei internacional.
B. Israel tem a obrigação de cessar as violações da lei internacional; tem a obrigação de cessar imediatamente os trabalhos de construção do muro [...] e desmantelar imediatamente a estrutura já construída, e anular ou tornar imediatamente inefetivos todos os atos regulatórios e legislativos relacionados.
C. Israel tem a obrigação de reparar todo o dano causado pela construção do muro [...].
D. Todos os Estados têm a obrigação de não reconhecer a situação ilegal resultante da construção do muro e não dar auxílio ou assistência para manter a situação criada por tal construção; todos os Estados Signatários da Quarta Convenção de Genebra relativa à Proteção de Civis em Tempos de Guerra, de 12 de agosto de 1949, têm além disso a obrigação, enquanto respeitam a Carta das Nações Unidas, e a lei internacional, de exigir de Israel o cumprimento da lei humanitária internacional incorporada naquela Convenção; [...]
É este parágrafo D do parecer consultivo da Corte Internacional de Justiça aquele que nos diz respeito nesta conferência. Nosso país, como signatário da Carta das Nações Unidas e da Convenção de Genebra, deve respeitar o parecer emitido pela Corte Internacional de Justiça e, “não dar auxílio ou assistência para manter a situação criada por tal construção”, além de ter “a obrigação de exigir de Israel o cumprimento da lei humanitária internacional”.



Referência deste artigo: GATTAZ, A.C. O muro de segurança israelense e o desrespeito à lei internacional. gattaz.pro.br, 01/jul/2005. Disponível em: http://www.gandalf.com.br/gattaz/artigos/artigo13.htm

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