Aprendemos que na Idade Média (período que se estendeu,
aproximadamente, entre os anos 500 e 1500 de nossa era), a produção de
alimentos mal bastava para a suficiência humana. Não havia depósitos de
cereais, pois do pouco que se produzia, grande parte tinha que ser novamente
empregada no plantio, sendo o restante rapidamente devorado. Não havia
frigoríficos, trens, ou navios a vapor, e apenas os alimentos produzidos
localmente eram consumidos – à exceção do sal e das famosas especiarias (cravo, canela, noz-moscada,
pimenta etc.), que, ao contrário do que se pensa, não eram usadas para conservar a carne, mas para disfarçar o sabor da carne mal
conservada. A oferta e a demanda eram assim extremamente ajustadas – com ligeira
vantagem para a demanda, o que era um elemento limitador do crescimento
populacional. Como a produtividade era muito baixa, pequenas variações
climáticas ou infestações de pragas provocavam grandes estragos, enquanto
crises mais prolongadas na agricultura tinham os resultados mais diversos –
tais como a Peste Negra dos anos 1348-1350, ou a Revolução Francesa em 1789
(esta já na Idade Moderna).
Com a chegada e a difusão do capitalismo e da ciência
moderna – nos ensinaram – tudo mudou. A produtividade agrícola aumentou
substancialmente, possibilitando o crescimento das cidades e a criação de
reservas cerealíferas. Novos meios de transporte, como galeões e caravelas (no
século XVI), navios a vapor e ferrovias (no século XIX), aviões e veículos
automotores (no século XX) aumentaram a oferta de produtos originários de
outros países ou continentes. O frigorífico e a embalagem a vácuo criaram novas
possibilidades de conservação e transporte dos alimentos. As crises agrícolas,
especialmente as devidas a fatores climáticos, eram portanto coisas do passado.
Entre o que aprendemos e a realidade do mundo contemporâneo
há uma larga distância. Em abril 2008 – portanto algumas semanas antes do
estouro da crise econômica – escrevi um artigo intitulado Entendendo a crise dos alimentos, que ainda permanece
bem atual. Neste eu argumentava que o mundo enfrentava uma crise na produção de
carboidratos devido a fatores conjunturais (aumento do preço do petróleo
devido às guerras dos EUA no Oriente Médio; crise na oferta de trigo na Argentina;
crise na produção de arroz no sudeste asiático) e estruturais (aumento
da demanda mundial; subsídios agrícolas nos países ricos; destinação de cereais
à produção de biocombustíveis nos EUA).
Quanto aos fatores estruturais, como era de se esperar, mantêm-se
bastante vivos. A cada ano um contingente maior de pessoas entra no mercado de
consumo, sobretudo pelo crescimento populacional e econômico dos países do
antigo “Terceiro Mundo”. A produção de alimentos em diversas partes do mundo –
sobretudo na África – permanece desestimulada pela impossibilidade de se
competir com os preços subsidiados dos produtores europeus e estadunidenses. A
má distribuição de renda acentua-se tanto nos países ricos como nos pobres,
gerando em consequência o desperdício entre uns e a carência entre outros.
Quanto aos fatores conjunturais que afetavam a produção de
alimentos em 2008, foram em grande parte resolvidos, embora se possa prever que
a superação da atual crise econômica faça o preço do petróleo retornar seu viés
de alta, encarecendo toda a cadeia produtiva alimentar. No ano de 2012, porém, enfrentamos
uma crise muito mais grave – a monstruosa seca que vem assolando mais de 60% do
território dos Estados Unidos, afetando gravemente a produção de grãos no país
e provocando um aumento mundial no preço dessas commodities – especialmente soja, milho e trigo, importantes não apenas
na alimentação humana mas também como ração animal, impactando também o preço
da proteína.
Considerando-se a possibilidade de superação da crise econômica
iniciada em 2008 nos EUA e realimentada em 2011-2012 na Europa, o preço do
petróleo irá aumentar, encarecendo a cadeia produtiva alimentar desde o
fertilizante até o motoqueiro do disk-pizza (sem falar que uma ou duas guerras
ainda podem estourar no Oriente Médio). Isto, conjugado à histórica seca nos
EUA, que pode se estender e deixar sequelas por mais alguns anos, provocará um
aumento substancial no preço dos alimentos, que passarão a ser vendidos apenas aos
clientes e países mais abonados. Entre os pobres dos países pobres, o preço dos
carboidratos irá se tornar proibitivo (o das proteínas já o é), e novas
manifestações começarão a espocar aqui e ali em consequência de más decisões
políticas somadas a condições climáticas extremas.
Será que estamos voltando à Idade Média?
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