Entendendo a crise dos alimentos

Nos últimos dias muito tem se falado sobre a crise dos alimentos, que subitamente se tornou a grande preocupação internacional, obscurecendo a anterior “onda verde” contra o aquecimento global que vinha tomando conta da mídia, da ciência e da política. A rigor, o problema já vem se agravando há algum tempo, mas, como os grandes afetados são as populações mais pobres dos países mais pobres (ao contrário do aquecimento global, que atinge a todos), a preocupação foi deixada de lado. Nas últimas semanas, porém, a falta ou carestia de certos produtos (sobretudo trigo e arroz) em algumas regiões do mundo (Egito, África sub-saariana, sudeste asiático) levou a violentas manifestações populares de descontentamento, que por sua vez trouxeram à tona um problema que não podia mais ser escondido.
A este problema uniu-se a questão energética, trazendo para o plano político os debates a respeito da crise alimentar. Rapidamente responsabilizou-se a destinação de terras agricultáveis para a produção de biocombustíveis como o principal fator a provocar ao encarecimento dos alimentos, e o Brasil, ao liderar a cruzada internacional a favor dos biocombustíveis, acabou sendo injustamente responsabilizado por eventos econômicos de muito maior abrangência.
O que se assiste, de fato, é a ocorrência simultânea de uma série de fatores estruturais e conjunturais que levaram ao aumento da demanda, à diminuição da oferta e ao aumento dos custos de produção, provocando um processo inflacionário global dos preços dos alimentos e a exclusão de milhões de pessoas deste mercado. Muitos destes fatores, sem dúvida, relacionam-se a certos aspectos da busca por fontes renováveis de energia – não no caso do Brasil, que produz biocombustíveis a partir de cana-de-açúcar, mas especificamente no caso estadunidense, que vem destinando milho e soja a esta função. E como as questões relacionadas à crise energética têm forte influência das questões geopolíticas – principalmente após a colocação em prática da Doutrina Bush – notamos que elementos políticos também devem ser incluídos na análise.

DEMANDA
O fator fundamental a pressionar os preços dos alimentos é o aumento mundial da demanda. Após décadas de quase total estagnação, a periferia do sistema capitalista euro-estadunidense passou a crescer em ritmo acelerado, trazendo para o mercado de consumo centenas de milhões de pessoas antes excluídas. Tal processo vem ocorrendo em diversas regiões da América Latina e da Ásia, porém manifesta-se com especial intensidade nos dois países mais populosos do mundo, China e Índia, o que provocou um inevitável impacto sobre a demanda – estima-se que apenas na China, cerca de 400 milhões de pessoas saíram do estado de miséria nos últimos 20 anos, tornando-se consumidores de alimentos e outros bens de consumo (o que faz aumentar também o preço de commodities como o minério de ferro e o petróleo).
Nos países em desenvolvimento em geral, o número de pessoas que vivem em extrema pobreza diminuiu de 28% para 19% entre os anos de 1990 e 2002. No Brasil, este valor declinou de 8,8% para 4,2% da população entre os anos de 1990 a 2005. É o que o presidente Lula chamou de “inflação do bem”, embora, contraditoriamente, o aumento dos preços dos alimentos, causado pela maior demanda por parte das classes mais pobres, venha a afetar justamente as classes mais pobres.

OFERTA
Outros fatores pressionando os preços dos alimentos relacionam-se à oferta, ocorrendo uma conjugação de fatores conjunturais e estruturais prejudiciais à produção mundial de alimentos. Entre os primeiros, destacam-se nos últimos meses a crise político-econômica na Argentina, afetando a produção e exportação de trigo, e o declínio na produção de arroz asiático devido a fatores climáticos. O forte aumento no preço e a relativa escassez destes produtos, que constituem a base da alimentação para diversos países do norte da África (trigo) e sudeste asiático (arroz), têm provocado violentas manifestações populares nos países mais afetados, trazendo o assunto à mesa do jantar da burguesia européia por meio das cadeias de TV internacionais.
A menor oferta de alimentos, entretanto, relaciona-se também com fatores estruturais e políticos envolvendo o centro do mundo capitalista: os subsídios europeus à sua produção agrícola, questionados na Organização Mundial do Comércio pelos países emergentes, e a decisão estadunidense de destinar e subsidiar suas colheitas de milho para a produção de álcool combustível.
A Europa, ao subsidiar a produção de seus agricultores, garantindo-lhes lucros não obstante seus altos custos de produção, vem dificultando ou tornando inviável aos produtores de países periféricos concorrer com aqueles, desestimulando sua produção agrícola – sobretudo em países da África, mais afetados pela proximidade com a Europa e menos bem preparados para concorrer tecnologicamente com esta. (Apenas como curiosidade: na Holanda, cada bovino recebe uma ajuda governamental diária de três dólares, enquanto 2,7 bilhões de humanos sobrevivem com menos de dois dólares ao dia, segundo cálculos do Banco Mundial; os “ultra-pobres”, que sobrevivem com menos de um dólar por dia, são 1,2 bilhões em todo o mundo, e constituem a metade dos africanos.)
Nos Estados Unidos, que repetem as práticas protecionistas européias, subsidiando seus produtores e dificultando a importação, um outro problema veio a surgir: com o apoio dado pelo presidente George W. Bush à parcial substituição do uso de gasolina e diesel pelo etanol, e a sobretaxação imposta ao álcool de cana-de-açúcar importado do Brasil, iniciou-se em ritmo acelerado a produção de álcool combustível a partir do milho, soja e de outras colheitas, o que vem sendo apontado por especialistas em bio-energia como um contra-senso sem tamanho – uma vez que o custo energético da produção de álcool de cereais é superior à energia gerada por sua combustão. Ademais, além de não se justificar sob o ponto de vista científico, a produção de biocombustível a partir das colheitas de milho e soja vem provocando forte impacto sobre a oferta destes produtos para a alimentação humana e sobretudo para a produção de ração, afetando por sua vez o preço de produtos de origem animal.
No Brasil, onde o etanol é produzido a partir da cana de açúcar, este problema não ocorre. Dados recentes indicam que a cana-de-açúcar vem sendo plantada em áreas anteriormente destinadas a pastagens e que foram tornadas ociosas com a melhoria das técnicas de produção intensiva. De fato, verifica-se que nem mesmo o açúcar tem sido menos produzido função do álcool combustível, e no último mês registrou-se no país produção recorde dos dois produtos. Além disso, aumentam também a criação de animais e a produção de grãos, o que vem tornando o Brasil, pouco a pouco, num dos maiores produtores de alimentos do mundo. São completamente infundadas, assim, as críticas ao país por sua produção de biocombustíveis – como veremos adiante, aspectos políticos e interesses econômicos têm peso muito maior na incorreta atribuição dos culpados pela alta dos alimentos.

CUSTOS
Outro fator importantes a afetar negativamente o preço dos alimentos decorre da alta do preço do petróleo e seus derivados, o que afeta toda a cadeia produtiva alimentar – e, quanto a este aspecto, não se pode deixar de notar a irresponsabilidade do governo estadunidense ao declarar guerra ao Iraque em 2003, levando o preço do “ouro negro”, desde então, a subir espantosos 400%, e sem tendência à reversão. Com este aumento ainda em curso, o setor agrícola vem sendo fortemente prejudicado, pois depende intensamente dos derivados do petróleo tanto na produção (combustível para máquinas agrícolas, fertilizantes) como na distribuição (transporte entre regiões distantes). Este aspecto, embora de forte impacto nos custos de produção de alimentos, parece que vem sendo pouco explorado pelos analistas da questão.

INTERESSES
Uma vez analisados os motivos principais da crise alimentar que subitamente emergiu, resta-nos refletir rapidamente sobre o que vem sendo dito a respeito do assunto, e quais os interesses por trás de afirmações como as de que os biocombustíveis são responsáveis pela alta dos alimentos.
Verifica-se que o discurso anti-biocombustíveis vem se desenvolvendo principalmente na Europa e no Oriente Médio, onde se concentram grande parte dos interesses petrolíferos mundiais. Assim, nos países vinculados à Organização dos Países Exportadores de Petróleo e na Europa, sede das grandes petrolíferas internacionais não-estadunidenses ou árabes (British Petroleum, Shell, Yukos, Repsol, Total), vem se desenvolvendo um forte discurso contra a adoção dos biocombustíveis. Tal interesse deve-se ao fato de que, em função da política adotada pela OPEP, a oferta mundial de petróleo mantém-se ao par com a demanda, fazendo com que os preços tendam sempre a subir, e nunca a descer – especialmente quando o ocorre a conjugação de fatores conjunturais diversos tais como destruição da infra-estrutura petrolífera iraquiana devido à Guerra, sabotagens nos oleodutos da Nigéria, temporadas de furacões no Golfo do México, interrupções políticas do fornecimento russo à Europa, etc. Com o etanol substituindo o uso da gasolina, a tendência futura seria o declínio do preço do petróleo, o que contraria tais interesses.
Nos Estados Unidos, não obstante a presença e influência das empresas de petróleo, a aposta nos biocombustíveis vem ocorrendo simultaneamente. Isto se deve em função da extrema dependência que o país tem de petróleo importado, o que fez, nos últimos anos, seu déficit comercial e fiscal atingir valores historicamente altos, contribuindo para o atual período recessivo que o país enfrenta. Por outro lado, os biocombustíveis seriam produzidos no próprio país ou importado de países considerados parte do “quintal” estadunidense, tais como os países centro-americanos e do Caribe, ávidos por produzir cana-de-açúcar e outras biomassas para a produção de etanol e biodiesel.

Conclui-se, assim:
1) é uma falácia a afirmação de que o Brasil tem responsabilidade na alta dos alimentos devido à produção de etanol e biodiesel. No país, tal produção não tem impedido o crescimento da produção de alimentos;
2) o mesmo não se aplica aos Estados Unidos, cuja opção política pela produção de biocombustíveis a partir de oleaginosas vem se mostrando incorreta, encarecendo preços de rações e alimentos, além de contribuir para o aquecimento global;
3) além do fator apontado acima, os alimentos também têm se encarecido devido ao aumento da demanda (principalmente nos países em desenvolvimento), à diminuição da oferta (devido a fatores conjunturais, tais como crises políticas ou climáticas, e estruturais, tais como subsídios europeus e estadunidenses aos agricultores) e ao aumento dos custos de produção e distribuição (devido à alta histórica do preço do petróleo);
4) interesses econômicos envolvidos na cadeia produtiva do petróleo e derivados têm favorecido a difusão da idéia de que a crise alimentar deve-se ao aumento da produção dos biocombustíveis.

Em vista de tais conclusões, nota-se que a solução para o problema agrícola passa pelas seguintes ações:
1) cessação da destinação de cereais à produção de biocombustíveis, retornando tais colheitas ao consumo humano e animal;
2) interrupção dos subsídios europeus e estadunidenses a seus produtores agrícolas, favorecendo o desenvolvimento da agricultura na África e em outras regiões do mundo subdesenvolvido e em desenvolvimento;
3) cessação, por parte dos Estados Unidos, da chamada “Guerra ao Terror”, forte fator de desestabilização política do Oriente Médio, favorecendo o declínio dos preços do petróleo e conseqüentemente dos custos de produção agrícola.

3 comentários:

Pra que disse...

Taí, resumiu muito bem as principais variáveis implicadas na origem da inflação dos alimentos, com direito a dados bem interessantes. Parabéns, e um abraço, velho!
Zé Marcelo

Unknown disse...

André, escritor habilidoso, você conseguiu colocar de forma concisa e completa um assunto bastante complexo. E ainda nos brindou com uma das análises mais pertinentes que lí sobre o tema até o momento.
Infelizmente o avanço na solução destes problemas se configura quase impossível enquanto tivermos a maior potência mundial, amedrontada pelo fantasma da decadência, governada por um demente armado até os dentes e uma Europa, ensimesmada, indisposta a modernizar suas políticas de bem-estar social.
No curto prazo, acho que vale a pena observar o desfecho da "infindável" Rodada de Doha e os desdobramentos quanto à recente proposta de Japão e Suíça para dificultar a adoção de medidas restritivas às exportações de alimentos, em contraposição a Brasil e Índia. Serão boas oportunidades para vermos se a postura da OMC tem realmente dois pesos e duas medidas para a questão do protecionismo agrícola.
Abração e parabéns!
Cristina

Unknown disse...

André, expôs muito bem a atual alta nos preços e falta dos alimentos,acarretando
as revoltas populares no mundo. Parabéns!
Conseguiu explorar minunciosamente fatores que influenciaram esta crise, com uma nova
visão, nos alertando para uma análise ainda mais completa sobre o assunto.
Abraços,
JG